O paradigma da prescrição ditado pelo Decreto 20.910/32

No período rotulado como República Velha (1889 a 1930), políticos de São Paulo e Minas Gerais se alternavam na presidência da República. No começo de 1929, o presidente da República Washington Luís quebrou o acordo do “café com leite” e indicou o nome do presidente de São Paulo, Júlio Prestes, como seu sucessor.

Três estados negam apoio a Júlio Prestes: Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Os políticos de Minas Gerais esperavam que Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, então governador do estado, fosse o indicado. Unindo-se à oposição de diversos estados, inclusive do Partido Democrático de São Paulo, formam a Aliança Liberal, contra a candidatura de Prestes.

Em setembro de 1929, Getúlio Vargas e João Pessoa são lançados candidatos da Aliança Liberal às eleições presidenciais. Getúlio Vargas como candidato a presidente e João Pessoa (presidente da Paraíba e sobrinho de Epitácio Pessoa) como candidato a vice-presidente.

Advogado em sua terra natal, formado em 1907 pela Faculdade de Direito de Porto Alegre, Getúlio Vargas, entre 1917 e 1925, foi deputado estadual e federal, líder da bancada gaúcha no Congresso e ministro da Fazenda do governo Washington Luís até eleger-se presidente do Rio Grande do Sul em 1927.

A Aliança Liberal tem o apoio de intelectuais, modernistas, membros da classe média urbana, da corrente “tenentista”, da qual se destacavam Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, Siqueira Campos, João Alberto Lins de Barros, Juarez Távora e Miguel Costa, Juracy Magalhães, muitos exilados e ex-integrantes da Coluna Prestes.

As eleições foram realizadas no dia 1º de março de 1930 e deram a vitória a Júlio Prestes e Vital Soares, eleitos com 57,7% dos votos.

A fraude campeando nos dois lados — no Rio Grande do Sul Vargas obteve 298.000 votos contra 982 dados a Júlio Prestes — a Aliança Liberal denuncia como fraudulenta a vitória de Júlio Prestes, e a partir daí, com base no Rio Grande do Sul e Minas Gerais, começa a conspirar contra a posse de Prestes, no Palácio do Catete.

Em junho a conspiração sofre um revés com o manifesto comunista de Luís Carlos Prestes, membro do tenentismo que rejeita a Aliança Liberal. Outro contratempo: morre em acidente aéreo o tenente Siqueira Campos.

No dia 26 de julho de 1930, João Pessoa é assassinado no Recife. Lindolfo Collor inicia a exploração política do fato e dá força à conspiração responsabilizando o governo federal de Washington Luis pelo crime.

As acusações de fraude e a degola arbitrária — não reconhecimento do mandato — de deputados mineiros e de toda a bancada da Paraíba da Aliança Liberal; o descontentamento popular devido à crise econômica causada pela depressão de 1929 e o descontentamento da classe média desempregada contribuem para o crescimento do movimento.

Em 3 de outubro, às 17h25, do Rio Grande do Sul, Osvaldo Aranha telegrafa a Juarez Távora comunicando o início da revolução, que se alastra pelo país. No Nordeste, os tenentes depõem oito governadores.

No dia 10, Getúlio Vargas lança o manifesto “O Rio Grande de pé pelo Brasil” e parte, por ferrovia, rumo ao Rio de Janeiro.

Uma grande batalha é esperada em Itararé (na divisa com o Paraná), onde as tropas do governo federal esperam deter o avanço das forças rebeldes, lideradas militarmente pelo coronel Góis Monteiro.

Em 24 de outubro os generais Tasso Fragoso e Menna Barreto e o Almirante Isaías de Noronha depõem o presidente Washington Luís e formam a Junta Militar Governativa. A batalha de Itararé não ocorre.

As oficinas dos jornais que apoiavam o governo federal são destruídas. Júlio Prestes, Washinton Luís e membros da República Velha são exilados.

Em 3 novembro a Junta Militar passa o poder a Vargas.

O governo provisório

Getúlio Vargas torna-se chefe do governo provisório e passa a governar por decretos. A Constituição de 1891 é revogada.

Pelo texto do Decreto 19.398, de 11.11.1930 , que instituiu o Governo Provisório, que dá início ao que foi denominado República Nova ou Estado Novo, vê-se o absolutismo do poder de Vargas, destacando-se o artigo 1º que lhe garantiu o exercício discricionário, “em toda a sua plenitude”, do Poder Executivo e Legislativo.

Mesmo com ordem de dissolução do Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmara Municipais; de suspensão das garantais constitucionais e criação de um Tribunal Especial para julgamentos de “crimes políticos, funcionais e outros” e os atos do Governo Provisório excluídos de apreciação judicial, o Decreto 19.398/30, garantiu, no artigo 10, o pagamento das obrigações e compromissos da União, Estados e Municípios assumidos no período da República Velha.

Em face desta garantia, o Governo Provisório é reconhecido pelas potências estrangeiras, dias depois.

O conceito e a legislação sobre os títulos

Conceitualmente, legalmente e doutrinariamente o título público, instrumento de captação da poupança popular, sempre foi imprescritível. Pensamento secular proclamado por Rui Barbosa, ministro da Fazenda e Justiça da República (1889-1891): “A apólice é renda; a nota não é; a apólice pode ter amortização, a nota não se amortiza; a apólice gira fora do país, e tem cotação nas bolsas estrangeiras; a nota não corre senão no mercado nacional; a nota falsifica-se, perde-se, anula-se; a apólice é inviolável e indestrutível; a nota não goza de privilégios; a apólice desfruta os maiores que a lei pode conferir à propriedade; a nota é um bem móvel; a apólice é equiparada aos haveres imobiliários, a apólice assenta na hipoteca dos bens do Estado; a nota não tem senão a garantia abstrata de um compromisso indeterminadamente adiado.” (Rui Barbosa, Escritos e Discursos Seletos, p. 966, Edições Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1995)

A imprescritibilidade material dos títulos públicos tem origem na Lei de 15 de Novembro de 1827, sancionada por D. Pedro I, que tratava sobre o reconhecimento e legalização da dívida pública brasileira, e em seu artigo 36 dizia o seguinte: “Não se admitirá oposição nem ao pagamento dos juros, e capital, nem à transferência destas apólices, senão no caso de ser feita pelo próprio possuidor”.

No édito de proclamação da República, o Governo Provisório de 15 de novembro de 1889 garantiu o pagamento das obrigações assumidas pelo antigo regime, promovendo a seguinte declaração: “O Governo Provisório reconhece e acata todos os compromissos nacionaes contrahidos durante o regime anterior, os tratados subssistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contractos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas”.

No seu artigo 11, parágrafo 3º, a Constituição de 1891 vedava aos estados e à União a edição de leis retroativas, ou seja, garantia o integral cumprimento das obrigações anteriormente firmadas, pelo seguinte: “É vedado aos estados, como à União prescrever leis retroativas”.

E no artigo 84 estabelecia que o governo da União era o fiador do pagamento da dívida pública interna e externa, dizendo o seguinte:“O governo da União afiança o pagamento da dívida pública interna e externa”.

Também a respeito do tema, o Decreto 15.783, de 8.11.1922, que regulamentou a contabilidade pública, determinou o seguinte em seu artigo 412: “Os juros da dívida pública não prescrevem, segundo expressa disposição da lei 15 de novembro de 1827”.

Ainda neste mesmo Decreto, artigo 417, foi determinado que: “A importância dos juros não recebidos nas épocas próprias pelos possuidores de títulos da dívida pública será transferida para depósito em conta especificada de cada empréstimo, e só por esta mesma conta poderão ser pagos, quando devidamente reclamados”.

A capitação da poupança popular através da emissão de títulos pela União, estados e municípios era prática comum, usual na administração pública.

A precisão e o detalhamento legal quanto a imprescritibilidade e segurança do recebimento de juros e principal, era para que a população confiasse a sua poupança nos títulos de crédito captados pela União, estados e municípios. Segurança, credibilidade e respeitabilidade era o que determinava o investimento nos títulos públicos que, em grande parte ao portador, não deixavam de ser dinheiro remunerado em circulação na economia.

E esta segurança jurídica foi ratificada por Getúlio Vargas no artigo 10 do Decreto 19.398/30, que manteve em “pleno vigor todas as obrigações assumidas pela União Federal, pelos estados e pelos municípios, em virtude de empréstimos ou de quaisquer operações de crédito público”.

Aliás, foi a segurança prometida neste artigo do decreto de instituição do Governo Provisório que abriu passagem para o seu reconhecimento pelas principais potências estrangeiras.

Os inimigos da República Nova

A conspiração de 1930 deu a Getúlio Vargas o poder para atentar contra todos os institutos de Direito. É assim que, numa única penada, através do Decreto 20.910/32, “eliminou” o direito adquirido consagrado na Constituição de 1891 e tornou discricionário o pagamento de milhões de contos de réis em obrigações e compromissos assumidos pelas entidades públicas na República Velha.

Vargas ditou o seguinte: O chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, usando das atribuições contidas no artigo 1º do Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, decreta:

Art. 1º — As dívidas passivas da União, dos estados e dos municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

Art. 2º — Prescrevem igualmente no mesmo prazo todo o direito e as prestações correspondentes a pensões vencidas ou pôr vencerem, ao meio soldo e ao Montepio civil e militar ou a quaisquer restituições ou diferenças.

Art. 3º — Quando o pagamento se dividir por dias, meses ou anos a prescrição atingirá progressivamente as prestações, a medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente decreto.

Art. 4º — Não corre a prescrição durante a demora que, no estudo, no reconhecimento ou no pagamento da dívida, considerada liquida, tiverem as repartições ou funcionários encarregados de estudar e apurá-la.

Parágrafo Único. — A suspensão da prescrição, neste caso, verificar-se-á pela entrada do requerimento do titular do direito ou do credor nos livros ou protocolos das repartições públicas, com designação do dia, mês e ano.

Art. 5º — Não tem efeito de suspender a prescrição a demora do titular do direito ou do credito ou do seu representante em prestar os esclarecimentos que lhe forem reclamados ou o fato de não promover o andamento do feito judicial ou do processo administrativo durante os prazos respectivamente estabelecidos para extinção do seu direito a ação ou reclamação.

Art. 6º — O direito a reclamação administrativa, que não tiver prazo fixado em disposição de lei para ser formulada, prescreve em um ano a contar da data do ato ou fato do qual a mesma se originar.

Art. 7º — A citação inicial não interrompe a prescrição quando, pôr qualquer motivo, o processo tenha sido anulado.

Art. 8º — A prescrição somente poderá ser interrompida uma vez.

Art. 9º — A prescrição interrompida recomeça a correr, pela metade do prazo, da data do ato que a interrompeu ou do ultimo ato ou termo do respectivo processo.

Art. 10º — O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes, das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas as mesmas regras.

Art. 11º — Revogam-se as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 1932, 111º da Independência e 44º da República”.

A redação do decreto, se não concorria para obstar ao pagamento integral das obrigações, criava condições para a discricionariedade no processo de resgate. O objetivo não foi outro senão impedir e criar “filtros” de pagamento aos detentores de títulos públicos simpatizantes e/ou membros da República Velha.

Temia-se que tais títulos em poder de membros da República Velha viessem a financiar a contra-revolução. Milhões e milhões em apólices e obrigações da União, estados e municípios, ao portador. Créditos de oligarcas e correligionários da República Velha, potencial fonte de financiamento da oposição, que deveria ser “exilada” do caminho da Nova República.

Em 1943, no crepúsculo da ditadura, Vargas refluiu e editou o Decreto-Lei 6.019/43, fixando normas para o pagamento de empréstimos tomados em libras esterlinas e dólares. Empréstimos tomados pelo Instituto do Café; Banco do Estado de São Paulo; municípios de Belém, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Pelotas, Santos, Recife, Niterói, São Paulo; Estados de Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Bahia, Distrito Federal entre outros.

No artigo 10 desta mesma lei Getúlio determinou que, na medida do “praticável” seria proporcionado aos portadores de títulos “emitidos em francos e florins, tratamento correspondente ao oferecido aos dos empréstimos equivalentes em dólares e libras”.

A Revolução de 1964

Em 1967, 35 anos depois, os vencedores da revolução de 1964, através do Decreto-Lei 263/67 — que é matéria de outro Ensaio —, convocaram aos portadores dos títulos da República Velha para substituí-los por cambiais em Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, a serem emitidas com cláusula de correção monetária, com base na Lei 4.357/64.

A mesma sorte do Decreto 20.910/32 de Getúlio, “anulado” pelo Decreto-Lei 263/67, teve o artigo 60 da Lei 4.069, de 11 de junho de 1962, editada pelo Presidente João Goulart.

O artigo 60 da Lei 4.069/62 foi uma releitura do artigo 1º do Decreto 20.910/32, determinando a incidência: “em prescrição legal as dívidas correspondentes ao resgate de títulos federais, estaduais e municipais, cujo pagamento não fôr reclamado decorrido o prazo de 5 (cinco) anos a partir da data em que se público o resgate das respectivas dívidas”.

Chama a atenção nesta Lei 4.069/62 o fato de João Goulart excluir da citada prescrição (§ 2º, do art. 53) os títulos denominados “Obrigações do Reaparelhamento Econômico”, ao portador, instituídos e emitidos por Getúlio Vargas através das Leis 1.474/51 e 1.628/62.

Tanto o Decreto 20.910/32, de Getúlio Vargas, quanto o artigo 60, da Lei 4.069/62, de João Goulart, foram normas destiladas em dois momentos de ruptura, exceção e anomalia da história republicana. Éditos absolutamente inconstitucionais que tinham por objetivo neutralizar, exilar e cassar a fonte financeira lastreada em títulos públicos de membros da oposição política. Aos amigos, o resgate; aos inimigos, o exílio, o processo, a prescrição.

Para ilustrar a discricionariedade e a letra morta que foi e é o Dec. 20.910/32, bem como o art. 60 da Lei 4.069/62, resta ver print screen extraído do site do Tesouro Nacional em 10.10.2006, que reconhece a existência de títulos federais imprescritíveis, e o resgate que ainda se processa sobre títulos emitidos entre 1883 e 1930. Isso mesmo, 1883 a 1930!!!

No referido print screen, que pode ser visto no Apêndice dos Ensaios sobre ORTN e Dívida Pública Flutuante do Estado de Goiás — Série A , publicados pela Editora Documentos Antigos, observa-se a existência de dois títulos sobre o tema: “Títulos em Libras do Decreto-Lei n. 6.019/43” e “Divida Renegociada (Decreto-Lei 6.019/43)”.

No conteúdo deste último título “Dívida Renegociada (Decreto-Lei 6.019/43)”, que depois foi retirado da página do Tesouro Nacional, o funcionário do Tesouro Nacional, “sr. Gordon”, detalha na linha 103, do Print screen 09, inúmeros títulos federais sem prazo de prescrição “(ns 12 a 29)”.

Estes documentos que fora colocados por engano no site do Tesouro, são provas concretas de que o Decreto 20.910/32 e o artigo 60 da Lei 4.069/62 não tinham outra finalidade se não exilar a fonte de financiamento da República Velha lastreada nas apólices federais, estaduais e municipais emitidas desde o Império.

Nas mãos dos cidadãos brasileiros os títulos emitidos no período da República Velha, sejam em libras, francos ou réis, não tinham e não têm o poder de ameaçar as relações creditícias do país. O mesmo não se pode dizer nas mãos do N. M. Rothscild & Sons Lda e/ou Loyds TSB e/ou JP Morgan Chase Bank a quem foi destinada toda a edição do Dec. Lei 6.019/43, pelo que se lê do conteúdo dos citados print screen extraídos do site do Tesouro Nacional e reproduzidos no Apêndice.

O Decreto 20.190/32 nos estados e municípios

Ao revogar a Constituição de 1891, dissolver o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais e nomear interventores em todos os Estados que tinham — parágrafo 2º do artigo 11 do Decreto 19.398/30 — “em relação à Constituição e leis estaduais, deliberações, posturas e atas municipais, os mesmos poderes que” cabiam ao Governo Provisório, é possível imaginar a caçada e a perseguição deflagrada pelas forças da revolução contra as fontes de recursos daqueles que se posicionaram ao lado do governo federal no interior do país.

Excluídos dos orçamentos e das finanças da União, estados e municípios na Nova República, os títulos foram guardados e transmitidos como esperança financeira, que se esvaiu da memória das gerações nos setenta anos seguintes pela concorrência de dez mudanças de padrão monetário e inflação acumulada que chegou a dezoito dígitos.

A ausência de liquidez determinada pelo Plano Real em meados da década de 1990 obrigou as empresas a buscarem ativos que pudessem garantir ou quitar as ações executivas dos créditos previdenciários e tributários estaduais e federais.

Assim, as apólices da União, estados e municípios começam a sair dos baús e açodadamente a serem oferecidas em garantia de penhora e pagamento de execuções.

Bancos, financeiras e governos buscam no Decreto 20.910/32 o fundamento para afastar a utilidade do crédito representado nas chamadas apólices “do início do século”, em confronto nas execuções de créditos recentes.

Poucos operadores tiveram o cuidado de utilizar os veículos processuais adequados para buscar a declaração de validade e o direito ao resgate do crédito representado. E o paradigma que até agora se firmou no Judiciário, foi o advindo das ações de execuções, que rejeitava a liquidez dos títulos ou o equivocado argumento da cotação em bolsa, tudo tendo como pano de fundo o argumento da prescrição baseada no texto do artigo 1º do Decreto 20.910/32.

As ações em que se buscou o resgate e utilização pela via adequada continuam tramitando e caberá ao Supremo Tribunal Federal a palavra final.

Imprescritibilidade dos títulos

Seja da União, estado ou município os títulos públicos sempre foram crédito de empréstimo tomado à população, investimento, poupança popular, crédito de natureza popular, que depois, por ausência de credibilidade dos próprios governos, migrou para as cadernetas de poupança criadas pelo sistema financeiro.

Os créditos de depósitos populares de poupança são imprescritíveis, conforme determinação do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 2.313/54, que diz o seguinte: “Os créditos resultantes de contratos de qualquer natureza, que se encontrarem em poder de estabelecimentos bancários, comerciais e industriais e nas Caixas Econômicas, e não forem reclamados ou movimentadas as respectivas contas pelos credores por mais de 25 (vinte e cinco) anos serão recolhidos, observado o disposto no § 2º do art. 1º ao Tesouro Nacional e aí escriturados em conta especial, sem juros, à disposição dos seus proprietários ou de seus sucessores, durante 5 (cinco) anos; em cujo termo transferirão ao patrimônio nacional. § 1º. Excetuam-se do disposto neste artigo os depósitos populares feitos nos estabelecimentos mencionados, que são imprescritíveis e os casos para os quais a lei determine prazo de prescrição menor de 25 (vinte e cinco) anos”.

Entendimento que é confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça: “Cautelar de exibição de documentos. Depósitos populares. Conta poupança. Prescrição. Art. 2º, § 1º, da Lei 2.313/54. Diz o Art. 2º, § 1º, da Lei n.º 2.313/54 que a ação para reclamar os créditos dos depósitos populares de poupança é imprescritível, afastando-se a incidência dos Arts. 177 e 178, § 10, III, do CCB/1916. (REsp 710471/SC – 2004/0177281-3 – Rel.: Ministro Humberto Gomes de Barros – DJ 04.12.06, p. 300)”.

Tendo ambos os créditos origem na captação da poupança popular, como pode o crédito popular de poupança bancária ser imprescritível e o crédito popular fiado em empréstimo ao Estado não gozar do mesmo privilégio????

Como pode a poupança popular captada e depositada em bancos particulares gozar de maior privilégio do que a poupança popular captada através de apólices, obrigações, bônus, empréstimos tomados pela União, estados e municípios????

Como pode a poupança popular captada e depositada junto ao sistema financeiros gozar de imprescritibilidade e a poupança popular investida em títulos do Tesouro Nacional, presumivelmente destinados à construção de portos, estradas, hospitais, obras de infra-estrutura, não gozar também de tal direito????

Fisco não pode se recusar a aceitar OTN’s na quitação de tributos

O ano é o de 1964, o presidente é o general Castello Branco e o ministro de Estado da Fazenda é o economista Otávio Gouveia de Bulhões. Além de instituir a correção monetária, ficou o Poder Executivo, através do art. 1º da Lei n. 4.357, de 16 de julho de 1964, autorizado a emitir Obrigações do Tesouro Nacional, títulos reajustáveis de acordo com a variação do poder aquisitivo da moeda.

A lei facultou a emissão de títulos múltiplos, ao portador ou nominativos, com vencimento entre 3 e 20 anos; juros mínimos de 6%, calculados sobre o valor nominal atualizado; valor unitário mínimo de dez mil cruzeiros.

Conquanto a lei as denominasse Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, passaram a ser chamadas ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).

Pelo § 4º do art. 1º da Lei 4.357/64, ficaram os portadores dos títulos emitidos em ORTNs autorizados a utilizá-los “para pagamento de qualquer tributo federal”, após decorridos 30 dias do seu prazo de resgate.”

Em 30 de novembro de 1964, 135 dias depois, foi publicada a Lei 4.506/64, que em seu artigo 86 acrescentava mais um parágrafo ao art. 1º da Lei 4.357, qual seja, o § 9º, pelo qual “as obrigações, a qualquer tempo, poderão ser recebidas, pelo seu valor atualizado, como caução fiscal ou contratual perante quaisquer repartições ou autarquias federais.”

Determinou o legislador da Lei 4.506/64 (art. 90), que as disposições do citado artigo 86, entrariam em vigor a partir de 1º de janeiro de 1965, revogadas as disposições em contrário.

Da sequente leitura dos parágrafos 4º e 9º da Lei 4.357/64, depreende-se que, a partir de 1º de janeiro de 1965, as ORTNs emitidas em conformidade com a Lei 4.357/64, poderão, a qualquer tempo, ser recebidas pelo seu valor atualizado como caução fiscal ou contratual perante quaisquer repartições ou autarquias federais, bem como, após decorridos trinta dias da data marcada para o seu resgate, ser utilizadas para pagamento de qualquer tributo federal.

Se não há limite temporal para ser oferecida em garantia de contrato ou caução fiscal, também não há para o poder liberatório de pagamento a qualquer tempo. O acessório segue o principal. A utilização em pagamento é ato consequente que segue o crédito dado em caução ou garantia do contrato eventualmente inadimplido.

Aos portadores que solicitam esclarecimentos acerca da validade das ORTNs na atualidade, o Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro, oferece a seguinte resposta na internet (www.tesouro.fazenda.gov.br):

2. Os títulos ORTN, OTN, BTN e LTN são papéis ainda em validade? Quais as possibilidades de resgate e de utilização na quitação de dívidas junto à União?

R: As ORTN, OTN e BTN encontram-se prescritos por força do art. 60 da Lei nº 4.069, de 11 de junho de 1962, abaixo transcrito:

“Art. 60 – Incidem em prescrição legal as dívidas correspondentes ao resgate de títulos federais, estaduais e municipais, cujo pagamento não for reclamado decorrido o prazo de 5 (cinco) anos, a partir da data em que se torna público o resgate das respectivas dívidas. Parágrafo único. Consideram-se igualmente prescritos os juros dos títulos referidos neste artigo, cujo pagamento não for reclamado no prazo de 5 (cinco) anos, a partir da data em que se tornarem devidos.” Os últimos lotes das ORTN e OTN títulos venceram até 1994, prescrevendo, portanto, em 1999. Diante disso, esses títulos estão prescritos, não havendo a possibilidade de serem utilizados na quitação de dívidas junto à União, nem cabendo quaisquer procedimentos para resgate ou atualização de valor.

A Fazenda Nacional rejeita o título de crédito em ORTN, unicamente baseada na tese da prescrição que estaria impressa no art. 60 da Lei 4.069/62.

Com todo o respeito, a Lei 4.069/62 é inaplicável aos Certificados de ORTNs, emitidos com base na Lei 4.357/64, não só pela inserção do § 9º, ordenado no art. 86 da Lei 4.506/64, como também por texto inserto na Lei do Plano Cruzado II, de 1989.

Do art. 43 da Lei 4.357/64, lê-se que “entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”, determinação que se repete no art. 90 da Lei 4.506/64.

Segundo o § 1º do art. 2º, do Decreto-lei 4.657/42, a Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria que trata a lei anterior.”

A regra ditada no art. 60 da Lei 4.069/62 é absolutamente incompatível com a regra posterior prevista nos parágrafos 4º e 9º do art. 1º da Lei 4.357/64, pela qual as ORTNs podem ser recebidas, a qualquer tempo, ou seja, por tempo ilimitado, como caução fiscal ou contratual e, por consequência, poder liberatório para pagamento de qualquer tributo federal.

No art. 86 da Lei 4.506/64, que acrescentou o § 9º ao art. 1º da Lei 4.357, o legislador foi preciso e objetivo na determinação de banir todo e qualquer limite temporal para a utilização dos títulos representativos de crédito em ORTN.

Se o certificado de crédito em ORTN emitido pelo Tesouro é apto para, a qualquer tempo, ser recebido em caução fiscal ou contratual perante os órgãos federais, também, de consequência, é a sua utilização para quitação de quaisquer tributos, passado o prazo de 30 dias anotado para o seu resgate.

Os defensores da tese que conclui pela aplicação do art. 60 da Lei 4.069/62 às ORTN não atentaram para o precedente existente no § 2º do art. 53 que, ao excluir as cambias de “Obrigações do Reaparelhamento Econômico” da aplicação do art. 60, também as tornou imprescritíveis.

Impensável seria a incidência de prescrição sobre títulos em ORTNs emitidos com prazo de resgate de três, cinco ou dez anos dados em caução ou garantia de contratos com duração de dez, quinze ou vinte anos.

Impossível imaginar os projetos e obras dos governos militares, atravancados por prazos prescricionais incidentes sobre os títulos que o próprio Poder Executivo emitia e as construtoras, por exemplo, ofereciam como garantia e caução dos contratos para com o mesmo Poder.

O pagamento pelo uso do crédito dado em caução ou garantia é ato acessório e consequente que segue à obrigação do contrato inadimplido. Ora, como dar em garantia de contrato de quinze anos um crédito cujo prazo de resgate prescreve em cinco, oito ou dez anos?

Por determinação do art. 6º do Dec. Lei 2.284/86, que congelou preços e criou o Plano Cruzado I, as ORTNs da Lei 4.357/64 passaram a ser denominadas OTNs.

Em 1989, no Plano Cruzado II, as ORTNs/OTNs foram extintas, porém, assegurada a liquidação dos títulos em circulação. Assim ficou determinado no art. 15, da Lei 7.730, de 31 de janeiro de 1989: “Ficam extintas: I – em 16 de janeiro de 1989, a Obrigação do Tesouro Nacional com variação diária divulgada diariamente pela Secretaria da Receita Federal – “OTN fiscal”; II – em 1º de fevereiro de 1989, a Obrigação do Tesouro Nacional de que trata o art. 6º do Decreto-Lei nº 2.284, de 10 de março de 1986, assegurada a liquidação dos títulos em circulação.”

Conquanto extintas, aos títulos ainda em circulação representativos desse crédito, emitidos sob a égide da Lei 4.357/64, ficou assegurada a sua liquidação e/ou utilização em pagamento de tributos e/ou caução fiscal ou garantia contratual perante órgãos e autarquias federais.

Se na mente do legislador do Plano Cruzado II subsistisse a ideia de que os títulos estavam sujeitos ao prazo de prescrição ditado no art. 60 da Lei 4.069/62, com certeza ele teria restringido a amplitude da garantia.

Mas o legislador não restringiu, não excetuou, não distinguiu e não declarou a existência de ORTNs em circulação prejudicados ou colhidos por prescrição.

Daí dizer que até a edição da Lei 11.079, em dezembro de 2004, os certificados de crédito em ORTNs, ao portador, eram admitidos e recebidos sem qualquer restrição para garantia das contratações públicas. Eis o texto do art. 56 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), que trata das garantias, antes a alteração: “A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras. § 1o  Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia: I – caução em dinheiro ou títulos da dívida pública”; depois da alteração: “I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, devendo estes ter sido emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil e avaliados pelos seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Fazenda” (Redação dada pela Lei 11.079, de 2004).

Foi a exigência da Lei 11.079/2004 — de registro em central de custódia autorizada pelo BC —, aliada à legislação que permite a sua utilização no ambiente tributário, que fez com que as ORTNs saíssem das gavetas, vez que até então eram aceitas em licitações e/ou garantia de contratos com estados e municípios.

A preferência para utilização junto a tais entes teve sua razão na redação do parágrafo único do art. 3º do Dec. 1.737/79, que então expropriava aos titulares os juros no período de depósito na CEF, quando em garantia de contratos com órgãos federais.

O Decreto-lei 1.737/79 disciplina os depósitos e pagamentos de interesse da União na Caixa Econômica Federal, determinando o seguinte: “Art 1º – Serão obrigatoriamente efetuados na Caixa Econômica Federal, em dinheiro ou em Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTN, ao portador, os depósitos: I – relacionados com feitos de competência da Justiça Federal; II – em garantia de execução fiscal proposta pela Fazenda Nacional; III – em garantia de crédito da Fazenda Nacional, vinculado à propositura de ação anulatória ou declaratória de nulidade do débito; IV – em garantia, na licitação perante órgão da administração pública federal direta ou autárquica ou em garantia da execução de contrato celebrado com tais órgãos. § 1º – O depósito a que se refere o inciso III, do artigo 1º, suspende a exigibilidade do crédito da Fazenda Nacional e elide a respectiva inscrição de Dívida Ativa. § 2º – A propositura, pelo contribuinte, de ação anulatória ou declaratória da nulidade do crédito da Fazenda Nacional importa em renúncia ao direito de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso interposto. Art 2º – Os depósitos serão efetuados à ordem do Juízo competente, nos casos dos incisos I, II e Ill do artigo anterior, e da autoridade administrativa competente, nos demais. Art 3º – Os depósitos em dinheiro de que trata este Decreto-lei não vencerão juros. Parágrafo único. Os juros das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional depositadas reverterão, em todos os casos, à Caixa Econômica Federal, como remuneração pelos serviços de depósito dos títulos.”

Se o depósito do crédito em ORTN vinculado à ação anulatória de débito (item III, artigo 1º), “suspende a exigibilidade do crédito da Fazenda Nacional e elide a respectiva inscrição de Dívida Ativa”, muito mais razão e direito tem o contribuinte que oferece a ORTN em ação para pagamento do tributo, quando a autoridade administrativa desatende à previsão da parte final do art. 2º.

Em outras palavras, se a norma garante a suspensão da exigibilidade e elide a inscrição na Dívida Ativa do contribuinte que deposita a ORTN para discutir judicialmente a anulação do débito, melhor direito assiste ao contribuinte que se vale da ORTN para promover ao pagamento ou à remição do débito frente à resistência administrativa da autoridade fazendária.

Com todo o respeito, a invocação, seja do Decreto 20.910/32, seja do art. 60, da Lei 4.069/62 ao caso das ORTNs, são postulados que auguram contra o Estado de Direito, contra a República, contra a moralidade pública, contra a poupança das famílias e empresas detentoras destes créditos.